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olhos de farofa

por Gabriel Cruz Lima
olhos de farofa gabriel cruz lima

“Din-dom dom, rap é o som”

Racionais MC’s

Cinza gasto prestes a mergulhar na areia. As mãos de um homem seguram o objeto antes de ele ser objeto. Ali, suspenso no quando anterior à função, possibilidade. Objetivamente, porém: nada. Enquanto não descer a mão em direção à areia: nada. Nenhuma coisa cumprindo nada é. Assim ali, no átimo que antecede a rajada, quase não existo. A condição de estar é dessa protoação, a mão firmada ao cabo plástico prometendo furar a areia. E se de alguma maneira aquilo que era pra ser feito não for feito ou for feito de uma maneira absurda. Antes de cumprir, quando as mãos se abaixarem e fizerem, o desvio. A mão, antes rente e certa, tombaria. Daí que no limite eu não tinha certeza se naquele momento era pra confluir. Areia, metal. Metal revolvendo a areia. Desejo. Finalize. Seja.

Ele poderia ter dado um destino diferente àquilo. Não. Aconteceu. O objeto foi objeto e fez. Ao afundar naquela densidade, o cinza se perdeu no branco ocreado. Dos olhos que veem, eu me encontrava parcial. A ponta plástica era quase ocultada pelos dedos. Sobrava um fio de azul do cabo. E essa raia azulada, tímida, só existia entre. Assim, eu me encontro num estado de fé com as coisas. A mão segura o cabo que sustenta o metal que remexe a terra. A razão é a fé.

A mão ocupada de casamento era firme no trato. O homem mexia nas areias, procurando. Do sem fim branco tingido de gordura a emersão do toiço. Ainda primário, raro, sujo da terra que o cobria. Pequeno também, pois a bruta pedra fundamental fora imolada. Fragmentada. Em cubículos. Tão pequenos que deles só restava o farelo de outrora.

O homem não estancou. Ali do jeito que se apresentava a coisa, era do jeito que a coisa havia sido planejada. Percebo pelo olhar sem surpresa do homem que o pedregulho achado era de autoria do escavador. Ele mergulhava o metálico côncavo a procura do que fora feito por ele. E outros emergiram junto ao primeiro filho. Mais dois ou três, sem sustos, sem profusão, milimétricos.

Ao ver que do primeiro fragmento, outros brotaram, uma nesga de saliva se fez. Minha boca triste de fome é a vazão anímica. Ali, naquele milímetro de porco, o sentido.

O homem junta esta obra à areia e joga na minha pilastra de carne. Sem escusas. A suposição correta. Era dessa maneira que as coisas eram e deveriam ser. Assim sua obra funde ao bife. E as pedras preciosas junto da areia grudando na cola amolecida pelo carvão. Eu não pedi, mas ele me deu. Achei pouco, quero mais. Ele percebe meus olhos ávidos. A mão esquerda ainda segurando o trunfo e a direita girando meu espeto e cada grão daquele sonho se colando e colando e alimentando por antecipação o famélico. Mas chega. Ele quer colocar mais, só que empapa. Eu ainda quero sentir o gosto de morder minha carne rosada. Ele insiste ainda sobrou um pouco de farofa, você não quer? Não, tá bom assim. Você tem certeza? Sim. Absoluta? Por que não teria? Essa farofa é boa, fiz hoje de tarde. Coloquei até bacon. Tá fresquinha. Põe mais. Já tem bastante, eu acho. Só mais um pouco.

Por fim, ao negar sistematicamente a farofa, ele me deixou livre. Me debrucei no espetinho. A primeira mordida, afoita, deixou metade de um quadradinho por comer. A superfície rosa se descortinava ante os meus olhos. Na boca, a harmonia: farofa, bacon e churrasco. A doçura do sangue animal jorrando garganta abaixo saciava o dia.

De repente, o fardo. A carne estava doce. Presumo que viria dali a insistência da farofa. Antes da pergunta, insiro o pedaço que faltava do primeiro filete. O gosto ainda é o mesmo, doce. Pergunto, deixando no tom o desagrado:

“De onde vem essa carne?”

“Do Animal. Daonde mais?”

Começo a olhar a carne restante. Nada visível. Toco, examinando a textura comum que supusera com o olhar. Nada. O homem tosse, creio que para chamar a atenção. A mão anelada que antes me servia farofa desliza sobre a testa. Percebo que ao levantar a mão em direção ao rosto, a manga da camiseta também se mexe. Com isso, na parte interna do bíceps um queixo boquiaberto se desenha. Pela cor me parece um palhaço.

Abaixo a cabeça e paro a inspeção. Na segunda mordida continua o doce. Olho a metade presa ao espeto. Fecho os olhos. Ainda doce. O tato e os olhos enganam aquilo que a saliva não esquece. Difícil descer. As coisas são e cumprem da maneira que devem.

Os olhos não viram, mas na penúltima parte, um fio de cabelo longo veio na língua. Eu te vi e sei que você viu que eu tirei aquele cabelo da boca. Ninguém disfarçou.

“Mais farofa, por favor.”


Gabriel Cruz Lima é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É tio da Maria Luiza e escreve contos e crônicas quando os chakras se alinham.

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